O rei de Portugal D. João III doou as terras entre o Cabo de São Thomé e
Cabo Frio a Pero de Góes, que aqui desembarcou em 1539. A Capitania de São
Thomé tinha 30 léguas de costa, e, para colonizá-la, Pero convidou o amigo
Martim Garcia, alguns parentes e dez ou vinte colonos. Eles fundaram uma
povoação entre os rios Itabapoana e Paraíba do Sul, na região do atual
município de São João da Barra, batizando-a de Vila da Rainha, onde plantaram
as primeiras mudas de cana-de-açúcar do estado. Segundo o frei Vicente do
Salvador, que escreveu uma história do Brasil em 1627, a povoação esteve bem
nos dois primeiros anos. Depois, os índios se insurgiram e atacaram o povoado
durante cinco ou seis anos, intercalados por breves tréguas. O fidalgo não
suportou a sequência de ataques e partiu com sua gente para o Espírito Santo,
usando embarcações que lhe emprestou o negociante Martim Ferreira. Num dos
trechos do livro, o padre diz o seguinte: “No distrito desta terra dos
Aitacazes, que é toda baixa e alagadiça, estes gentios vivem mais à maneira de
homens marinhos do que terrestres; e assim nunca se poderão conquistar [...]
porque quando se tenta colocar as mãos neles, metem-se dentro das lagoas, onde
não há entradas a pé nem a cavalo; são grandes nadadores e a braços tomam
peixe, ainda que sejam tubarões, para o que levam um pau de mais ou menos um
palmo que lhes metem na boca direito, e como o tubarão fique com a boca aberta,
[...] com a outra mão lhe tiram as entranhas. [...] Os levam para a terra não
tanto para os comerem, mas para dos dentes fazerem as pontas de suas flechas,
que são peçonhentas e mortíferas, e para provarem força e ligeireza. Dizem que
as provam com os veados nas campinas, tomando-os a punhos, e ainda com os
tigres e onças e outros ferozes animais. “Estas e outras incríveis coisas se
contam deste gentio, creia-as quem quiser, porque nunca foi alguém ao seu poder
que retornasse com vida para contar”. Na ‘Historie Pittoresque des Voyages’,
também faz outro relato assustador sobre os Goitacás, que seriam canibais que
adoravam carne européia. Diz parte do texto: “Os Ouetacás não cessam de
guerrear seus vizinhos e não recebem estrangeiros entre eles para negociarem.
Quando eles não se julgam mais fortes, fogem com ligeireza comparável à dos
veados. Seu porte sujo e asqueiroso, seu olhar feroz e sua fisionomia brutal
fazem dele o povo mais odioso do Universo; ele se distingue da maior parte dos
indígenas do Brasil pela sua cabeleira a qual deixam cair pelas costas e só
cortam um pequeno círculo na fronte. Sua linguagem não parece com as dos mais
próximos vizinhos. Não se trata com eles senão de longe e sempre com a arma em
punho, para reprimir pelo medo um apetite desordenado que se excita neles à
vista da carne branca dos europeus. As permutas se fazem à distância de cem
passos, quero dizer, de uma a outra parte se leva a um lugar igualmente
distanciado as mercadorias. Amostram-nas de longe, sem pronunciar uma palavra e
cada um deixa ou toma o que lhe convém. Mais parece que a desconfiança é
recíproca e que, se os portugueses temem serem devorados, os Ouetacás não temem
menos a escravidão”. Como se vê, tudo o que norteava a atitude arredia dos
índios de Campos era a manutenção de sua soberania e liberdade. Aos
portugueses, qualquer ato que impedisse a colonização era tido como criminoso,
razão pela qual tão facilmente se disseminaram as histórias de canibalismo. Se
um índio fosse pego cortando uma cana ou um cacho de bananas, atos que para ele
eram o costume desde tempo imemoriais, seria logo castigado ou escravizado; sem
compreender a punição, os índios, logo que se soltavam, retornavam à tribo para
dar conta da violência que sofreram, despertando o compreensível clamor de
vingança entre os seus. Os Goitacás, então, atacavam os telhados dos colonos,
feitos de palha, com flechas incendiárias, para depois alvejarem seus
moradores.
RITUAIS DE GUERRA
A verdade sobre o apetite de carne humana: havia entre os índios da região,
Goitacás ou não, a tradição de comer a carne e beber o sangue do inimigo
derrotado, tanto para reincorporar à tribo o espírito de antepassados mortos
pelo inimigo, quanto para dar coragem aos novos guerreiros. O capturado era
engordado e tinha à disposição uma índia que lhe prestava os mais diversos
serviços até o dia da execução. Nesse dia, toda a tribo bebia e dançava,
inclusive o prisioneiro, que depois tinha o corpo atado. Era levado às tribos
vizinhas, onde podia contar como já havia amarrado seus inimigos e como sua
tribo viria vingar sua iminente morte. De volta à tribo Goitacá, ao prisioneiro
era dado um monte de pedras, e os guardas diziam: “que antes de sua morte lhe
seja concedido o direito de se vingar!” O prisioneiro podia atirar as pedras
nos dominadores, e várias pessoas saíam feridas neste ritual. Descarregada a
raiva, o executor, que até então se mantinha oculto, se aproximava armado da
‘tangapemma’, um tacape todo enfeitado com penas. O carrasco indagava ao
prisioneiro se era verdade que ele tinha matado e comido alguns companheiros, e
era a glória do quase morto lançar um último desafio: “Dá-me a liberdade e eu
te comerei a ti e aos teus!” Assumido o ‘crime’, o golpe com a pesada clava era
desferido neste momento, e a índia que cuidara do prisioneiro se aproximava
para chorar um pouco. Ela mesma, entretanto, se serviria daquela carne mais
tarde. Outras mulheres lavavam e cortavam o corpo, esfregando o sangue nas
crianças para nelas criar bravura. Os portugueses também se assustavam com a
grande quantidade de ossadas que viam pela tribo e que os Goitacás tinham
orgulho de mostrar. Mas tudo não passava de ritual de guerra, repetido por
gerações e gerações até o extermínio dos indígenas.
CAÇADORES HOSPITALEIROS
Os Goitacás sempre foram hospitaleiros com náufragos e fugitivos, além de convidarem
tribos amigas para suas festas. Veneravam um ser supremo, Tupã, ao qual se
dirigiam com voz de lamento nas ocasiões de trovoadas. Os colonizadores de tudo
fizeram para exterminar os antigos habitantes da planície, dando a eles até
roupas de doentes para que morressem em grande quantidade, muitas vezes a tribo
inteira. Para a história dominante, os colonizadores foram heróis que
desbravaram uma terra selvagem, enquanto os índios eram apenas animais que se
alimentavam de carne humana. Como vimos, a realidade não foi bem essa, e, se
alguém teve os direitos desrespeitados, foram os índios, expulsos do lugar que
sempre habitaram.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEivvGolp5nu4ZRS6SVvwTr-R2hhBVBWVryrdojkQRg_1q4H4J9KBt8sGeiEDGiQDHezK7vpQyEvliNX5zV4QbQHUyV72GqGXGnoKbJLqb7aLBXEbWk4XE5jgm3kEb8C1eXOup86OOlmHd7O/s280/indio+goitaca.jpg)
Cabo Frio a Pero de Góes, que aqui desembarcou em 1539. A Capitania de São
Thomé tinha 30 léguas de costa, e, para colonizá-la, Pero convidou o amigo
Martim Garcia, alguns parentes e dez ou vinte colonos. Eles fundaram uma
povoação entre os rios Itabapoana e Paraíba do Sul, na região do atual
município de São João da Barra, batizando-a de Vila da Rainha, onde plantaram
as primeiras mudas de cana-de-açúcar do estado. Segundo o frei Vicente do
Salvador, que escreveu uma história do Brasil em 1627, a povoação esteve bem
nos dois primeiros anos. Depois, os índios se insurgiram e atacaram o povoado
durante cinco ou seis anos, intercalados por breves tréguas. O fidalgo não
suportou a sequência de ataques e partiu com sua gente para o Espírito Santo,
usando embarcações que lhe emprestou o negociante Martim Ferreira. Num dos
trechos do livro, o padre diz o seguinte: “No distrito desta terra dos
Aitacazes, que é toda baixa e alagadiça, estes gentios vivem mais à maneira de
homens marinhos do que terrestres; e assim nunca se poderão conquistar [...]
porque quando se tenta colocar as mãos neles, metem-se dentro das lagoas, onde
não há entradas a pé nem a cavalo; são grandes nadadores e a braços tomam
peixe, ainda que sejam tubarões, para o que levam um pau de mais ou menos um
palmo que lhes metem na boca direito, e como o tubarão fique com a boca aberta,
[...] com a outra mão lhe tiram as entranhas. [...] Os levam para a terra não
tanto para os comerem, mas para dos dentes fazerem as pontas de suas flechas,
que são peçonhentas e mortíferas, e para provarem força e ligeireza. Dizem que
as provam com os veados nas campinas, tomando-os a punhos, e ainda com os
tigres e onças e outros ferozes animais. “Estas e outras incríveis coisas se
contam deste gentio, creia-as quem quiser, porque nunca foi alguém ao seu poder
que retornasse com vida para contar”. Na ‘Historie Pittoresque des Voyages’,
também faz outro relato assustador sobre os Goitacás, que seriam canibais que
adoravam carne européia. Diz parte do texto: “Os Ouetacás não cessam de
guerrear seus vizinhos e não recebem estrangeiros entre eles para negociarem.
Quando eles não se julgam mais fortes, fogem com ligeireza comparável à dos
veados. Seu porte sujo e asqueiroso, seu olhar feroz e sua fisionomia brutal
fazem dele o povo mais odioso do Universo; ele se distingue da maior parte dos
indígenas do Brasil pela sua cabeleira a qual deixam cair pelas costas e só
cortam um pequeno círculo na fronte. Sua linguagem não parece com as dos mais
próximos vizinhos. Não se trata com eles senão de longe e sempre com a arma em
punho, para reprimir pelo medo um apetite desordenado que se excita neles à
vista da carne branca dos europeus. As permutas se fazem à distância de cem
passos, quero dizer, de uma a outra parte se leva a um lugar igualmente
distanciado as mercadorias. Amostram-nas de longe, sem pronunciar uma palavra e
cada um deixa ou toma o que lhe convém. Mais parece que a desconfiança é
recíproca e que, se os portugueses temem serem devorados, os Ouetacás não temem
menos a escravidão”. Como se vê, tudo o que norteava a atitude arredia dos
índios de Campos era a manutenção de sua soberania e liberdade. Aos
portugueses, qualquer ato que impedisse a colonização era tido como criminoso,
razão pela qual tão facilmente se disseminaram as histórias de canibalismo. Se
um índio fosse pego cortando uma cana ou um cacho de bananas, atos que para ele
eram o costume desde tempo imemoriais, seria logo castigado ou escravizado; sem
compreender a punição, os índios, logo que se soltavam, retornavam à tribo para
dar conta da violência que sofreram, despertando o compreensível clamor de
vingança entre os seus. Os Goitacás, então, atacavam os telhados dos colonos,
feitos de palha, com flechas incendiárias, para depois alvejarem seus
moradores.
RITUAIS DE GUERRA
A verdade sobre o apetite de carne humana: havia entre os índios da região,
Goitacás ou não, a tradição de comer a carne e beber o sangue do inimigo
derrotado, tanto para reincorporar à tribo o espírito de antepassados mortos
pelo inimigo, quanto para dar coragem aos novos guerreiros. O capturado era
engordado e tinha à disposição uma índia que lhe prestava os mais diversos
serviços até o dia da execução. Nesse dia, toda a tribo bebia e dançava,
inclusive o prisioneiro, que depois tinha o corpo atado. Era levado às tribos
vizinhas, onde podia contar como já havia amarrado seus inimigos e como sua
tribo viria vingar sua iminente morte. De volta à tribo Goitacá, ao prisioneiro
era dado um monte de pedras, e os guardas diziam: “que antes de sua morte lhe
seja concedido o direito de se vingar!” O prisioneiro podia atirar as pedras
nos dominadores, e várias pessoas saíam feridas neste ritual. Descarregada a
raiva, o executor, que até então se mantinha oculto, se aproximava armado da
‘tangapemma’, um tacape todo enfeitado com penas. O carrasco indagava ao
prisioneiro se era verdade que ele tinha matado e comido alguns companheiros, e
era a glória do quase morto lançar um último desafio: “Dá-me a liberdade e eu
te comerei a ti e aos teus!” Assumido o ‘crime’, o golpe com a pesada clava era
desferido neste momento, e a índia que cuidara do prisioneiro se aproximava
para chorar um pouco. Ela mesma, entretanto, se serviria daquela carne mais
tarde. Outras mulheres lavavam e cortavam o corpo, esfregando o sangue nas
crianças para nelas criar bravura. Os portugueses também se assustavam com a
grande quantidade de ossadas que viam pela tribo e que os Goitacás tinham
orgulho de mostrar. Mas tudo não passava de ritual de guerra, repetido por
gerações e gerações até o extermínio dos indígenas.
CAÇADORES HOSPITALEIROS
Os Goitacás sempre foram hospitaleiros com náufragos e fugitivos, além de convidarem
tribos amigas para suas festas. Veneravam um ser supremo, Tupã, ao qual se
dirigiam com voz de lamento nas ocasiões de trovoadas. Os colonizadores de tudo
fizeram para exterminar os antigos habitantes da planície, dando a eles até
roupas de doentes para que morressem em grande quantidade, muitas vezes a tribo
inteira. Para a história dominante, os colonizadores foram heróis que
desbravaram uma terra selvagem, enquanto os índios eram apenas animais que se
alimentavam de carne humana. Como vimos, a realidade não foi bem essa, e, se
alguém teve os direitos desrespeitados, foram os índios, expulsos do lugar que
sempre habitaram.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEivvGolp5nu4ZRS6SVvwTr-R2hhBVBWVryrdojkQRg_1q4H4J9KBt8sGeiEDGiQDHezK7vpQyEvliNX5zV4QbQHUyV72GqGXGnoKbJLqb7aLBXEbWk4XE5jgm3kEb8C1eXOup86OOlmHd7O/s280/indio+goitaca.jpg)
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEir4eWuriRUYUDUbCjWKVzZVGT2RxZoAvw4vNKLiiwwQNrYlJxhwY9TVGU0mOKdRQv4SvPH5k9SBmdNJhj-71053NYL322QQI37jXc975l7u7fRzaBjSPyietiociJLsptdMvzsyPcdafv2/s280/indio+goitaca+2.jpg)
Pesquisa: Hélvio Gomes Cordeiro
Imagem: Acervo do Instituto Historiar.
INTERESSANTE MUITO BOM MESMO. ÓTIMA INFORMAÇÃO!OBRIGADO POR POSTAR
ResponderExcluirSou bisneto de índio originário de campos tenho aparencap indígena e sempre quis saber minhas origens agora axho que descobri
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